terça-feira, 26 de julho de 2011

«vou levar o meu filho às Antas»

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Vou levar o meu filho às Antas

O meu filho mais novo fez agora seis anos: está a entrar na idade em que deve começar a ser introduzido a alguns dos horríveis rituais machistas lusitanos. O futebol, por exemplo.
Um dia destes, pego nele pela calada e aí vamos nós para Santa Apolónia, apanhar o inter-cidades para o Porto, a caminho do Santuário das Antas, do ronco do Dragão e do perfume do [Mário] Jardel - nome que ele, aliás, já conhece de cor.
Visto que agora já começou a aprender a ler, o primeiro gesto há-de ser o de comprarmos leitura de viagem para os dois. Jornais para mim, BD's para ele (embora eu também seja um grande leitor de BD, algumas das quais o deixam extasiado quando, por inadvertência, me esqueço delas ao alcance dele, como a BD erótica do Milo Manara). Comprada a leitura, iremos instalar-nos num compartimento e partilhar aquela excitação mágica dos minutos antes da partida do comboio. Aliás, tenho 300 kms pela frente para lhe ensinar toda a magia do comboio.
Começarei por lhe tentar explicar como é deslumbrante e leve a estrutura da Gare do Oriente, na EXPO, obra de Santiago Calatrava. Depois, identificar-lhe-ei os rios, ao longo do caminho: o Tejo, o Mondego, o Vouga e o Douro. // Depois, as estações e os apeadeiros, as casas do chefe-de-estação, com o seu inevitável quintal de couves portuguesas. A meio do caminho começará a chover, surgirão velhos edifícios esventrados de fábricas abandonadas, ruas tristes de paralelepípedos correrão ao lado da linha, alguns carros esperarão na passagem de nível enquanto uma senhora levantará melancolicamente uma bandeira à nossa passagem, o comboio parará em Fátima, Coimbra B, Aveiro e Espinho. Ele quererá saber o nome e o destino de cada terra e na sua cabeça de criança ficará guardada a mesma imagem que eu guardo de infância: um comboio que atravessa rápido, como se estivesse em fuga, um mundo estático, feito de personagens de presépio que parecem plantados nos campos, nas ruas, nas estações, com a única finalidade de nos olharem enquanto passamos.
Almoçaremos no vagão-restaurante, com os copos a tilintar e os talheres hesitantes sobre o molho béchamel da pescada à portuguesa e eu lembrar-me-ei de quando tinha também seis anos e sentado também à mesa do restaurante do «Foguete» seguia o fumo do cigarro da minha avó, enquanto ela olhava distraída pela janela, um olhar que parecia pintar a paisagem de azul.
No tempo da minha avó, a velha travessia da periclitante ponte de D. Luís I, à chegada ao Porto, era sempre antecedida de um acto de contrição, rezado em voz alta no silêncio da carruagem - e eu aterrorizado, de mão dada com ela, olhando as águas escuras do rio, lá em baixo, que esperavam para me engolir.
Disso, está agora poupado o meu filho. Infelizmente, já não chegaremos também a São Bento, depois de mergulharmos naquele túnel escuro, cheio de fuligem e ruídos metálicos de travões sobre os carris, mas que dava um ar final de mistério e aventura à viagem. Sairemos antes em Campanhã e apanharemos um táxi para eu lhe mostrar a minha terra: a Boavista, a Foz, o Campo Alegre, a Ribeira. A meio do passeio lancharemos na «Arcádia», e deixaremos as malas no pequeno Hotel da Boavista, na Foz, onde na minha infância se passava as tardes a jogar poker.
Às 8 horas partiremos para as Antas, o último quilómetro feito a pé, por entre um delírio de azul-e-branco que é um verdadeiro deboche para os olhos de um portista exilado em Lisboa. Jantaremos, numa barraquinha, uma sandes de entremeada e uma cola para ele, uma sandes de "coirato" e um copo de vinho verde, para mim. Um pacote de queijadas para o jogo, cachecóis e bandeiras e aí vamos nós, o coração descompassado ao ritmo do ruído surdo dos passos da multidão no cimento do Estádio.
Das entranhas escuras desse monstro de betão emergiremos para a luz ofuscante dos holofotes junto aos quais a chuva forma fios de prata brilhando na noite. Lá em baixo, o relvado, lindo, perfeito, parece esperar para ser pisado só por deuses, não por simples mortais. De repente, ele estremecerá, a sua mão apertará a minha, excitado e assustado, os olhos fixos na "boca do túnel" pela qual saem correndo, um a um, os onze deuses de azul-e-branco, saudados por um grito de cinquenta mil gargantas: «Po-oo-orto! Po-oo-orto!»! Então aí, o meu filho perguntar-me-á, como costuma fazer: «é o petracampeão [sic], pai, não é?»
Este é o instante mágico - o instante iniciático que sela, para todo o sempre, o amor irracional entre um homem e um clube de futebol. Um amor para a vida, que ninguém, jamais!, poderá alterar.
Esta iniciação é tarefa de homem, dever indeclinável de pai, que mulher alguma entende. Nem sequer adianta depois tentar explicar a uma pergunta atabalhoada: «Como é que é o futebol, mãe? Olha, é mais ou menos assim: um cheiro a bifanas, uma multidão aos gritos, uma relva a brilhar, azul-e-branco por todos os lados e nós, encharcados e roucos, patinando na lama à procura do carro».
Enfim, uma paixão inexplicável.
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ps: os negritos são da minha responsabilidade.

in TAVARES, Miguel Sousa - Não te deixarei morrer, David Crockett. Alfragide: Leya, 2010. (29ª edição), págs. 107-109. ISBN 978-989-660-045-7.

caríssima(o),

é com muita satisfação que te informo que consegui recuperar um dos escritos que mais prezo de Miguel Sousa Tavares, publicado no seu afamado livro de crónicas e que dei à estampa em Outubro de 2010, para comemorar a quingentésima "posta de pescada"® do (entretanto falecido) Tomo I.
com a sua divulgação, pretendi partilhar uma crónica que me trouxe à lembrança tantas (e tão saudosas) recordações no velhinho Estádio das Antas. é por as recordar que aquelas linhas são inebriantes, de fazer arrepiar os pelinhos dos braços e de uma pulsão contagiante. de facto, a descrição daquele espaço de vivências, único para quem se considera portista, foi o mesmo onde existiu um lugar inigualável no universo azul-e-branco e que não encontro no Dragão: o "tribunal das Antas".
quem dele se recorda põe a mão no ar, sff. ;).

ps2: a sugestão musical abaixo dispensa apresentações, bem como os motivos por que a escolhi para animar este post.

beijinhos e abraços (saudosistas)!
e Muito Obrigado! pela tua visita :)

sugestão musical:
Maria Amélia Canossa, «hino do FC Porto»

6 comentários:

  1. " ... uma crónica que me trouxe à lembrança tantas (e tão saudosas) recordações no velhinho Estádio das Antas ... "

    A ti o meu muito obrigado, com este texto, fiquei emocionadissimo, pena é que a vida seja tão curta, quando se pensa no passado.

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  2. Nunca tinha lido tal texto e só no fim percebi que era do MST. Está um retrato muito bem desenhado e com cores muito vivas que deixam a nossa imaginação em livre arbítrio de escolha de personagens. Pode ser qualquer a percorrer tal viagem. Mesmo não se sendo de lisboa. Obrigado por este bocadinho de fuga à realidade.


    Avivar

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  3. caríssimos,

    é sempre gratificante para mim, cá deste lado, perceber que também se coloriu o dia de alguém, aí desse lado, com uma simples partilha de um texto enorme como este.

    Muito Obrigado! pelas vossas palavras.
    espero continuar a ser merecedor delas.

    @ McChina

    bem-vindo! ;)

    abraços para «ambos os dois» ;)

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  4. Escrevi o meu aqui, tendo este texto lindo com base ::

    http://avidanumagoa.blogspot.com.br/2011/12/vou-levar-o-meu-filho-sao-januario.html

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  5. E o mais interessante é que o meu pequeno recém-ganhou uma camisa do Porto!!! =)

    Aqui ::

    http://avidanumagoa.blogspot.com.br/2014/09/vou-levar-o-meu-filho-sao-januario-ou.html

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  6. @ Evandro

    muito obrigado! pela visita e pelas gentis palavras!
    (e já sabes o que penso sobre esta bela estória, pois que transmiti o meu sentimento no sítio próprio :D)

    abr@ço
    Miguel | Tomo II

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(sendo que, num blogue de 'um portista indefectível', obviamente que esta caixa é destinada preferencialmente a 'portistas dos quatro costados'. e até é certo que o "lápis", quando existe, é azul.)

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